Relato de viagem: Fiquei preso no Peru por causa do coronavírus

Catolico007 Mensagens: 872
Qui Abr 09, 2020 2:35 pm
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Passageiro desembarca com máscara do Aeroporto Internacional de Guarulhos. Foto: Fábio Tito/G1.

Seguindo as recomendações da OMS e Ministério da Saúde, passei pelo isolamento social obrigatório durante 15 dias após voltar do exterior. Mais precisamente, de uma viagem que seria minhas férias para o Peru. Infelizmente não foram as férias que eu queria, tampouco as que planejei por tanto tempo.

Quando saímos do Brasil em 14/03 rumo à Lima no Peru, já havia sido decretada a pandemia do coronavírus, mas os mercados de forma geral na América Latina ainda não tinham tomado medidas efetivas de fechamento. Existiam poucos casos e nenhuma morte. Nem mesmo na Europa, onde a situação já estava ruim, as fronteiras tinham sido fechadas. Logo, assumi o risco e resolvi manter a viagem, acreditando que não haveriam desdobramentos maiores, afinal iria manter distância das pessoas e evitar espaços aglomerados.

Logo quando cheguei a Lima no fim de tarde do dia 14, a cidade estava linda, com muita gente na rua, bares e restaurantes cheios, muita gente de máscaras, e lá estávamos nós, evitando aglomeração, mas turistando. No dia seguinte, fomos ao centro e vimos a cidade relativamente cheia, com muitos turistas. Entre alguns drinks e alguns lanchinhos, percebemos um "ar" diferente entre as pessoas, grudadas nas telas dos seus celulares ou ligadas nos televisores de estabelecimentos.

Chegando ao hotel, ligamos a TV e recebemos a notícia de que o presidente do Peru havia decretado que as fronteiras seriam fechadas em 24 horas, e que todas as atividades do país estavam suspensas. O desespero bateu. A LATAM Airlines Brasil não atendia o telefone e nem respondia ao chat. A Embaixada Brasileira já estava fechada. Não havia muito o que fazer, então decidimos ir bem cedo para o Aeroporto de Lima tentar antecipar a volta ao Brasil. Aí começou a loucura.

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O aeroporto

Chegamos cedo ao aeroporto e as filas já estavam gigantescas. Sem muitas informações disponíveis, o aeroporto estava uma loucura. Uma infinidade de turistas estava na mesma situação que eu: desesperados, sem nunca ter passado por uma situação dessas.

Depois de umas sete horas em pé, numa fila que andava tão rápido como uma tartaruga, fomos surpreendidos pelo exército. Os fardados entraram no aeroporto e no alto-falante soltou-se o anúncio de que o aeroporto estava sendo fechado naquele momento e que todos, sem exceção, deveriam sair, pois ele seria fechado. Nem preciso dizer que imediatamente o caos se instaurou. Era gritaria para todo lado, e ao tentar perguntar para o pessoal do aeroporto sobre o que fazer, eles simplesmente disseram "procurem abrigo, se mantenham seguros, pois não podemos fazer nada".

Houve um corre-corre louco por parte de todo mundo - parecia cena de filme. Conseguimos chamar um táxi e no calor do momento pedimos para ir para a Embaixada do Brasil em Lima. Era o único lugar que vinha em mente.

A busca por uma solução

Quando chegamos, dezenas de outros brasileiros se aproximavam ao mesmo tempo pedindo ajuda. As portas da embaixada já tinham sido fechadas e a orientação novamente era procurar abrigo. Ninguém sabia o que fazer. Em tese o decreto determinava o fechamento de fronteiras e isolamento social somente à meia-noite daquele dia e ainda eram três da tarde, mas tudo já estava fechando. Contatos foram trocados com outros turistas brasileiros que foram à embaixada e grupos de WhatsApp foram criados.

Corremos para voltar ao hotel e conseguimos reativar a reserva que havíamos feito check-out antes mesmo de amanhecer. No momento, era um alento.

Liguei para a LATAM, para a embaixada, para o Concierge do cartão de crédito, para um amigo que é assessor de deputados e nada. Todo mundo tentava de tudo, mas ninguém conseguia fazer algo naquele momento. Todo mundo foi pego de surpresa com o fechamento das fronteiras. Embora soubéssemos que o caos estava se aproximando, não acreditávamos que ele de fato chegaria. E ele chegou.

Nas ruas, o exército e a polícia fiscalizava o toque de recolher. Vale ressaltar que foi um toque de recolher de verdade, nada parecido com o que o Brasil está vivendo, com várias pessoas batendo perna nas ruas. Naquele momento, ficamos sabendo pela mídia que eram quase quatro mil brasileiros presos só no Peru na mesma situação que eu, sem saber o que fazer.

Os grupos começaram a pipocar no WhatsApp e gradativamente tentamos organizar ações orquestradas na tentativa de conseguir sair daquela situação.

Bombardeamos as redes sociais da embaixada com mensagens e nada de respostas. Conseguimos contato com a mídia, e vários repórteres de várias emissoras, jornais, revistas, sites e blogs entrevistaram colegas para cobrir tudo o que estava acontecendo, e de alguma forma pressionar as autoridades a tomar as providências necessárias. Depois de diversas matérias jornalísticas, a embaixada resolveu se manifestar, informando que estava ciente e tomando providências, mas nada de concreto ou claro o suficiente para nos tranquilizar.

Os dias iam passando e nada de uma resposta da LATAM ou do governo federal no Brasil. Enquanto isso, nem podíamos sair para comprar alimento, e viver apenas do café da manhã do hotel não ajudaria muito a manter a imunidade alta em uma pandemia.

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A autorização de saída

Um novo alento veio quando o governo do Peru emitiu uma portaria autorizando os estrangeiros a sair do país. Era a nossa salvação. Ao menos, pensamos isso. Nos grupos, já haviam organizado de ir todo mundo para o aeroporto ou para a embaixada. Nesse instante a embaixada começa a responder nossas mensagens pedindo para que ninguém saísse de onde estava. O aeroporto ainda estava fechado e a ordem de toque de recolher se mantinha para todos, sejam nativos ou turistas. Só agora iria começar a negociação com as companhias aéreas. Turistas do México, Israel e Canadá começaram a ser repatriados, mas os brasileiros, que eram o maior número, nada.

O desespero continuava batendo. Conseguimos ir ao mercado, mas as prateleiras já estavam bem vazias. Quem andava na rua já usava máscaras. Ao sair do mercado vimos de longe uma idosa tropeçar perto de policiais e seguranças de uma casa de câmbio. Nenhum deles a ajudou, nem mesmo as poucas pessoas que estavam perto. Me bateu um desespero, pois quem estava perto, inclusive os policiais, não ajudaram porque estavam receosos de serem contaminados. Minhas pernas travaram, ao mesmo tempo que tentei acelerar o passo para tentar chegar até a senhora, outra pessoa chegou e foi repreendida pela polícia. O pânico estava no meu olhar. Após alguns minutos sem conseguir me mexer, vi que os policiais conseguiram sacolas plásticas e colocaram entre as mãos e a face para tentar levantá-la, numa forma de tentar se proteger contra um possível contágio.

Os dias iam passando e as notícias de que o Brasil iria adotar isolamento social e fechamento de fronteiras contribuíram para que os batimentos cardíacos ficassem mais acelerados, mesmo precisando dizer para a família que estava tudo tranquilo, para não os preocupar. A esperança era que reportagens relatando a nossa situação não paravam de ser produzidas, e os amigos - a eles eu não tenho nem palavras para dizer o quanto eu sou grato - faziam muito barulho nas redes sociais de todas as autoridades, organizações, e quem fosse necessário pressionar, pedindo soluções para nos tirar daquelas férias tão bem planejadas, mas que viraram um pesadelo.

Presos no hotel, o telefone era a única saída. Gerenciava o tempo pressionando nas redes sociais, enviando e-mails para deputados, senadores, Itamaraty, Força Aérea Brasileira, Ministério da Justiça e Segurança Pública, Conselho de Classe, falando com jornalistas, pedindo ajuda a órgãos de defesa do consumidor, relatando a situação em fóruns de viagem, tentando ajuda do concierge do cartão de crédito, tentando falar com a LATAM, mantendo a calma de familiares e amigos. E, além disso, também tinham os grupos de WhatsApp.

Os grupos foram organizados no WhatsApp com mais de mil pessoas e eram a melhor forma de tentar entender, aprender e compartilhar da situação. Cada um vivia um drama diferente. Eu que achava que estava vivendo um verdadeiro filme de ação dramático, vi que estava mais próximo de um suspense. Várias pessoas já estavam sem dinheiro, grávidas, em tratamento médico, com necessidades especiais, sem hospedagem e até presos por desrespeitar o toque de recolher.

Após muita - mas muita mesmo - pressão, a Embaixada do Brasil em Lima começou a ter uma postura um pouco mais colaborativa. Colegas do grupo do WhatsApp que apresentaram estar em situações de emergência foram ao menos atendidos por eles de forma mais proativa. Grávidas tiveram um atendimento inicial para saber se estava tudo bem, pessoas que precisavam de remédios controlados tiveram receitas aprovadas por médicos e conseguiram sua medicação.

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Enfim, a volta para casa

Após muita negociação, já passada uma semana, fomos informados tarde da noite que a embaixada conseguiu que dois aviões pousassem no dia seguinte em Lima para fazer a repatriação dos brasileiros, através de um voo humanitário entre LATAM e GOL. Ainda não havia lista de nomes, mas a preocupação era clara: 3.700 brasileiros não iriam caber em duas aeronaves nem mesmo se fossem modelos 747.

Após muita pressão, e poucos contatos - afinal, muitos não tinham um telefone que pudesse receber chamadas ou acesso à internet com frequência para ver os e-mails - foi divulgado quase perto da meia-noite que meu nome estava na lista de passageiros a serem repatriados. O sorriso só não foi maior porque eu sabia que muitos brasileiros ainda iam ficar para trás.

Tentei dormir, mas era impossível. A preocupação era em como chegar cedo na porta da embaixada, que era o ponto de encontro, se Uber e táxis não estavam funcionando. O jeito era ir a pé, mesmo sendo quase 40 minutos de caminhada com mochila nas costas e malas grande na mão. O medo de ser parado pela polícia devido ao toque de recolher era grande, mas para isso eu tinha recebido uma carta Salvo Conduto emitida pela Embaixada do Brasil com autorização do governo de Lima, em que o portador da mesma poderia transitar pelas ruas, devido questões humanitárias.

Ao chegar à embaixada já existiam filas imensas e, dessa vez, diferente de todos os dias anteriores que ela estava fechada, pudemos entrar no jardim (que era enorme), e ter um mínimo de acolhimento. Até água ofereceram, item básico que foi negado a vários de nós que tentávamos uma palavra com um funcionário consular tantas outras vezes naquela semana. O transporte até o aeroporto foi feito em ônibus e caminhões do exército, com batedores e policiais na rua, como numa operação de guerra, em comboio pelas ruas de Lima. A cada rua que o comboio passava, víamos militares fazendo bloqueios para que outros carros ou pessoas não se aproximassem. Imaginei que uma operação como aquela deveria ter custado caro.

Ao sair do ônibus, do lado de fora do aeroporto, uma lista errada estava nas mãos do funcionário da LATAM, que não encontrou meu nome, mesmo tendo uma lista oficial divulgada pela empresa no site da embaixada. Algumas pessoas começaram a chorar, pois o nome delas também não estavam. Funcionários da embaixada estavam tentando resolver. 11 pessoas no total apenas no ônibus que eu estava tiveram problemas na chamada nominal e depois ficamos sabendo que o mesmo ocorreu em vários outros ônibus.

Com a nova lista, fomos autorizados a entrar no aeroporto, por uma entrada lateral. Nela, estavam diversos turistas e nativos desesperados tentando embarcar para suas cidades. Naquele momento entendi o motivo de tantos batedores. O aeroporto estava aberto somente para estes dois voos. Cães farejadores revistaram nossas malas. Após o check-in, quase uma sensação de paz. Ainda faltava embarcar, chegar a São Paulo, e conseguir de alguma forma uma conexão ao meu destino final em Salvador.

O avião veio lotado. Usei um cachecol para proteger nariz e boca, e de tempos em tempos usava álcool gel. Ninguém na Classe Executiva, mesmo que o bilhete comprado de retorno originalmente fosse premium. Pensei que os mais idosos poderiam usar aquelas vagas, para dar mais lugar a outras pessoas que não tiveram seus nomes na lista. A tripulação da aeronave estava toda de máscara e luvas.

No serviço de bordo no nosso voo foi servido arroz e carne e refrigerante. Com a mensagem de "preparar para o pouso", as palmas eram uníssonas. Ali sim, consegui respirar aliviado. Eram 22:30 em São Paulo. Fiquei surpreso ao descer e ver pouquíssimas pessoas no aeroporto usando máscaras, nenhuma equipe veio medir nossa temperatura ou passar qualquer orientação sobre as medidas de isolamento, nem questionário por parte da Anvisa ou Ministério da Saúde na alfândega.

Ao buscar o voo de conexão para nossas cidades, colegas do grupo que vieram no outro avião da GOL nos informaram que o avião deles teve de pousar em Campinas, pois um dos passageiros teve um infarto em pleno voo. O avião deles aguardava para ir para Guarulhos e ninguém podia descer da aeronave.

Ao tentar uma conexão, a LATAM não sabia ao certo como nos encaixar ao destino final, afinal nossos bilhetes originais haviam sido cancelados e substituídos por outros, imagino por ser um voo de repatriação humanitária. A LATAM alegava que meu bilhete havia sido cancelado e que eu não teria direito a conexão. E meu voo de repatriação humanitária era só até São Paulo. Depois de duas horas em Guarulhos, e centenas de pessoas com destinos diferentes, consegui minha conexão somente após muita insistência. Eram três da manhã quando cheguei em casa.

Enfim, tem história. Resumindo, eu tenho que agradecer à mídia, por ter ficado em cima das autoridades cobrando posições e passando informações reais de como estava a situação. Aos meus amigos que fizeram tanto, que ajudaram tanto, que pressionaram tanto, que se preocuparam tanto. Aos familiares, que se preocuparam, que rezaram, que estavam juntos querendo saber se estava tudo bem. Um maravilhoso obrigado por tudo, por todo amor que senti nesses dias.

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GabrielDias Mensagens: 41746
Qui Abr 09, 2020 2:37 pm
Desesperador! Parece coisa de filme mesmo. Que bom que tudo se resolveu.

Emanuel Mensagens: 369
Qui Abr 09, 2020 3:04 pm
Impressionante! Não consigo nem
imaginar o desespero. Que bom, que conseguiu chegar em casa!

manucaldas Mensagens: 1403
Qui Abr 09, 2020 3:18 pm
Caramba, que pesadelo. Ótimo texto, transmitiu perfeitamente o drama que deve ter sido.

yureco Mensagens: 2490
Qui Abr 09, 2020 3:26 pm
Impressionante. Ainda bem que chegaram bem em casa.

Catolico007 Mensagens: 872
Qui Abr 09, 2020 4:40 pm
Ainda bem que eu estava com o chip de telefone internacional da Elo Diners. Imagina passar por uma situação dessas sem acesso a ligações e internet.

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Fabio Mensagens: 8900
Sex Abr 10, 2020 2:13 am
Que drama! Ainda bem que entre mortos e feridos, todos se salvaram.

Muita irresponsabilidade do governo peruano em fechar tudo de supetao, sem dar tempo a ninguem para fazer nada. Pelo menos o Trump anunciou a suspensao dos voos para a Europa com 4 dias de antecedencia, dando tempo para que as pessoas retornassem a suas casas.

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baran Mensagens: 10215
Sex Abr 10, 2020 10:11 am
Caramba, que situação! Ainda bem que no final deu tudo certo.

JPSAL Mensagens: 778
Sex Abr 10, 2020 8:07 pm
Horrível, mas ao que parece pelo menos a embaixada fez um bom trabalho em conseguir trazer as pessoas de volta. Imagino que deva ser uma operação de guerra mobilizar tudo isso.

Essa histórioa que fechar tudo só adianta se você instruir as pessoas e fizer direito, se fizer na bagunça dá tudo errado...

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JulianaMagalhaes Mensagens: 6026
Sex Abr 10, 2020 10:09 pm
Que história impressionante e que desespero! Consigo nem imaginar! Achei irresponsabilidade do governo essa atitude radical sem aviso prévio.

Só eu achei um absurdo a classe executiva voar vazia? Como assim pessoas ainda ficaram lá e eles não colocaram no voo?





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